carrossel dos esquisitos
Ana Ademar
Deste confinamento forçado aprendi várias coisas: a usar uma panela de pressão, a fazer fermento de padeiro, a plantar cebolas e sementes de coisas várias, aprendi que não me aborreço, que gosto de estar sozinha e que podia muito bem viver isolada porque acho que não me afectaria: uma casa no meio do nada, internet, claro, Netflix também ajuda, o ukelele, Spotify, computador e papel e caneta, um espaço cá fora para quando está sol e janelas grandes para quando está sol e para quando chove, um carro para desenjoar um bocadinho e ir ver gente – não estou morta por dentro, não é?!
Gosto do silêncio e de que o telefone não toque. Aprendi que lá por ter tempo não quer dizer que seja produtiva. Não adianta ter todo o tempo do mundo, porque quando tenho todo o tempo do mundo não faço o que não me apetece. Faço o que não me apetece quando não tenho outra hipótese e por norma é em cima do prazo, debaixo de stress, pressão e níveis de ansiedade elevados.
Neste tempo todo não escrevi mais, não estudei mais, não li mais, não vi melhores filmes, não fiz nada que me enriquecesse. Não me apeteceu.
O grande ganho deste tempo todo foi o tempo mental, luxo que não tinha há muito. Ou então a desaceleração da vida e a redução drástica de coisas por fazer em cima do prazo facilitaram a relação entre os neurónios.
Não tenho dúvida absolutamente nenhuma que consegui sentir-me tranquila porque a situação excepcional de travagem a fundo foi geral e afectou toda a gente. O mundo parou. E eu, como parte do mundo que sou, parei também.
Estou expectante em relação ao futuro, claro. Tenho a certeza de que, ao contrário do que diz a Mariza (céus! Acabem os anúncios, por favor, já não se aguenta!), o pior está por vir: a crise económica que vai afectar toda a gente e a consequente crise social.
As promessas de que isto faria de todos nós melhores seres humanos nunca me convenceram, mas também não acredito que o vírus seja uma vingança da Mãe Terra ou um plano secreto dos Illuminati para dominar o mundo.
Custa-me a crer que haja quem, nem que seja por dois segundos, não tenha reequacionado a vida e não tenha sentido desejo de a transformar. A verdade é que ser contra-corrente é coisa para dificultar a vida, senão mesmo torná-la impossível. Mas penso que a ideia de ganharmos alguma independência face ao consumismo vigente começa a parecer um caminho viável e não tão digno de riso ou de chacota – “ah isso é prós hippies!”.
Mudar de vida, como dizia o grande Zé Mário é mais do que uma hipótese, é a atitude responsável. E sabendo eu o quão difícil pode ser isso ou impossível, porque o mundo não abranda por ninguém, podemos fazê-lo mais que não seja no mais pequenino detalhe do quotidiano, mais que não seja na compra no comércio tradicional ainda que nos consuma mais tempo, mais que não seja na compra responsável e controlada de bens que não são tão essenciais assim.
A mim fez-me pensar, questionar a minha forma de viver. O tempo que me deu foi uma verdadeira dádiva. O tempo de poder não fazer nada. Não me aborreço porque não fazer nada é, descobri, terapêutico. Parece que arrumei de tal maneira o cérebro que as ideias voltaram a ter espaço para fazer manobras e circular mais facilmente. Fez com que sentar-me a escrever um texto à última da hora fosse muito mais simples porque há tempo e espaço mental para, descontraidamente, encontrar um tema e as palavras mais certas.
A verdade é que não precisamos de grande coisa o velhinho slogan/refrão “paz, pão, habitação, saúde e educação”** são as bases da coisa, o que vier por acréscimo é ganho.
“(…) Mudar de vida é urgente | é o que diz essa gente | pelo menos | é o que pensa essa gente | é o que essa gente sente
Se a vida fosse dif’rente… | vida vivida de frente | vida cordata e feliz |
Mesmo quando não o diz | é isso que a gente sente
Isso é que era bom! não faltava mais nada! | dizem esses que não vemos, mas que mandam nisto tudo – | Então, e a nossa mais-valia | a quem a vamos roubar?(…)”*
* “Mudar de Vida” José Mário Branco
** “Liberdade” Sérgio Godinho
Eu reequacionei muita coisa e também gostei de não fazer nada. É mesmo terapêutico, sem duvida!
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