Tudo vai acabar como começou?

idos de agosto

Sónia Calvário

O conflito no Afeganistão não parece ter fim e reflete bem como muitos países não passam de instrumentos para alimentar a guerra entre as grandes potenciais mundiais e os seus aliados.

O Afeganistão sempre foi geopoliticamente importante para as relações de domínio mundial, disputadas entre o Ocidente e o Oriente, e palco de conflitos internos, de cariz étnico, religioso e tribal, que o tem remetido a uma realidade incompreensível no séc. XXI.

A Guerra Fria, que opunha os EUA e a Ex-União Soviética, promoveu o conflito em diversos países e, a coberto da falsa luta pela liberdade destes povos, armou movimentos guerrilheiros e grupos terroristas.

O Afeganistão foi, em 1979, invadido pelos soviéticos, a pretexto do combate aos guerrilheiros islâmicos que ameaçavam a federação com a sua luta em nome do Islão. A saída destes invasores, dez anos depois, foi apoiada pelos EUA, primeiro de forma invisível, por intermédio dos amigos paquistaneses e da Arábia Saudita, através da denominada “Operação Ciclone”, apoiando belicamente os combatentes do movimento de resistência, Jihadistas, o que foi reconhecido, mais tarde, com a afirmação: “O que é mais importante na história do mundo? O Talibã ou o colapso do império soviético?”. Depois de forma pública, com a receção, em 1986, pelo Presidente Regan, de uma comitiva de líderes do Jihad, ao que se seguiu o fornecimento de mecanismos portáteis de lançamento de mísseis, que se revelou decisivo para expulsar os soviéticos.

A guerra civil que se seguiu à desocupação, ordenada por Gorbachev, abriu as portas, em 1994, ao surgimento do Talibã, grupo de estudantes sunitas, conservadores e fundamentalistas, que ganhou popularidade com a promessa de combater a corrupção e melhorar a segurança da população…

Os talibãs governaram o Afeganistão, entre 1996 e 2001, até à intervenção dos EUA e da NATO na sequência dos ataques de 11 de Setembro, suportado no argumento de que davam apoio a Bin Laden, líder da Al‑Qaeda, mentor dos atentados.

Durante anos, o Afeganistão foi considerado o país mais perigoso do mundo para as mulheres. A maioria das afegãs sujeitava-se a casamentos infantis, violações e violência física e verbal, o que não tendo desaparecido, nos últimos 20 anos de intervenção da NATO, foi de alguma forma mitigado: elas podiam estudar, trabalhavam e ocupavam cargos públicos.

Durante os cinco anos de governo Talibã, além das proibições que vigoravam para todos, como a de ouvir música, ver filmes, televisão ou vídeos, de celebração do Dia do Trabalhador, a obrigação de alterar os nomes que não fossem de origem islâmica, ou a amputação de membros por roubo, as proibições impostas às pessoas do sexo feminino, ao abrigo da Sharia, a lei islâmica, foram as seguintes:

– as mulheres não podiam trabalhar, à exceção de um número reduzido de médicas e enfermeiras e apenas em alguns hospitais de Cabul; nem podem sair sem estarem acompanhadas pelo marido ou um parente, homem; também não podiam ser observadas por um médico, pelo que, perante a carência de profissionais de saúde do sexo feminino, muitas morreram por falta de assistência.

– as mulheres não podiam frequentar a escola (apenas até aos 10/12 anos), nem mostrar qualquer parte do corpo em público e eram obrigadas a usar burca; a sua voz não pode ser ouvida, nem os seus passos, e estavam proibidas de rir; não podiam ir à janela ou à varanda, e não podiam usar as casas de banho públicas; estavam impedidas de andar de bicicleta ou de mota e de praticar desporto. 

– os cosméticos eram proibidos, tal como era a publicação de imagens de mulheres em revistas ou livros; não devia ser‑lhes dado espaço na rádio ou na televisão; e nenhuma praça, rua ou avenida podia incluir a palavra “mulher”.

– as mulheres acusadas de ter relações sexuais fora do casamento eram apedrejadas.

A saída de parte significativa do efetivo da NATO do território, em 2014, considerado o ano mais sangrento da história do país, fortaleceu os talibãs, que conseguiram expandir‑se, tanto que, em 2018, uma investigação da BBC apontava que o grupo estava ativo em cerca de 70% do país.

Em 29/02/2020, anunciado como “dia histórico”, depois de mais de uma centena de milhares de militares e civis mortos e feridos, Trump e o Talibã firmaram um “acordo de paz”, pelo qual os americanos (e a NATO) retirariam gradualmente as suas tropas até 11/09/2021, e o governo afegão libertaria prisioneiros. Foram libertados cerca de 5000 extremistas. Biden antecipou a retirada das tropas para o final de agosto. O resultado aterrador é conhecido.

A globalização do americanismo, percursor do chamado “mundo ocidental”, veiculado, após a II Guerra Mundial, por diversas formas (media, cinema, literatura, etc.), tem revelado ser altamente penalizador aos interesses da Humanidade. Impor o modelo ocidental, de organização social, económica e política, pode ser, e tem sido, devastador, em países que assentam numa lógica tribal e que tem códigos muito diferentes.

A verdade é que, no Afeganistão, depois de vinte anos, milhares de vidas perdidas e triliões de dólares gastos, parece que tudo vai acabar como começou: com o Talibã a governar, oprimindo um povo, perseguindo as minorias, subjugando as mulheres.

Sugestão para saber mais (artigos, videos): BBC

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